sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A história do "câncer"


"Analisando pela teoria, o câncer sempre esteve aí", afirma a paleopatologista Sabine Eggers, da Universidade de São Paulo. O câncer, pelo que se sabe hoje, é resultado de mutação genética. Como, desde o início da vida houve mutação, é razoável imaginar que a doença sempre existiu.

A mais antiga evidência de câncer, no entanto, remonta a 8.000 a.C. O tipo mais comum de neoplasia encontrada em fósseis, e ainda assim raramente, é o “osteossarcoma”, um câncer ósseo. "Para encontrar um único caso, é necessário estudar cerca de 5.000 fósseis com joelhos preservados", continua.

As primeiras descrições de tumores foram encontradas em papiros do Egito, e datam de 1.600 a.C. Existem também documentos na Índia, de 600 a.C., que descrevem lesões na cavidade bucal parecidas com câncer. O que fundamenta a teoria é que, por estudos arqueológicos, se sabe que aquela população comia sementes que são cancerígenas.

"Mas não podemos 'botar a mão no fogo", lembra Sabine. "Escritos antigos dos gregos e romanos referem-se, muitas vezes, a palavra 'tumor', mas pode ser qualquer tipo de inchaço ou algo maior do que deveria ser", continua.

Origem da palavra

Foi justamente um grego, Hipócrates, que cunhou a palavra "câncer". O "pai da medicina", como é conhecido, viveu entre 460 e 370 a.C. e usou os termos "carcinos" e "carcinoma" para descrever certos tipos de tumores. Em grego, querem dizer "caranguejo", pelo aspecto do tumor, as projeções e vasos sanguíneos ao seu redor fazem lembrar as patas do crustáceo.

Alguns séculos depois, entre 130 e 200 d.C., viveu Galeno, um médico romano. Considerado a maior autoridade na área por, ao menos, mil anos, ele foi referência no tratamento do câncer. Foi Galeno quem determinou que a doença era incurável e que, uma vez diagnosticada, havia pouco a fazer.

A medicina só começou a ter avanços significativos na Renascença, no século XV, quando floresceram por todos os lados cientistas e artistas, especialmente na Itália.

Michelangelo, um desses artistas, teria retratado em sua famosa escultura "A Noite" (La Notte), uma mulher com câncer de mama. A teoria baseia-se no aspecto disforme de seu seio, que, a considerar a habilidade do escultor, não foi casual.

Novas evidências

Somente no século XVIII o tabu da doença começou a mudar, com John Hunter, cirurgião escocês que sugeriu que alguns cânceres poderiam ser curados por cirurgia. Nesse mesmo século, um médico italiano atentou para o fato de que os hormônios poderiam ter influência sob a doença. Na Inglaterra, um médico escreveu um artigo alertando para os perigos do tabaco, que acabara de virar moda no país. E outro, percebeu que era grande a incidência de câncer na bolsa escrotal entre limpadores de chaminé.

A moderna oncologia desponta somente no século XIX. A descoberta da célula ganhara importância e, em 1867, o médico alemão Matthias Schleiden sugeriu que o câncer seria fruto da divisão de células doentes. Surge a anestesia e a cirurgia se desenvolve; a mastectomia radical, por exemplo, foi criada no final do século. Pesquisas lançaram os fundamentos da hormonioterapia e, em 1896, Wilhelm Röentgen descobriu o raio-X, que lhe valeria o primeiro Nobel de Física.

Armas de combate

Mas é somente no século XX que a pesquisa na área de câncer ganha vigor e as descobertas se intensificam. Em 1903, foram feitas as primeiras aplicações de radioterapia contra tumores. No entanto só a partir da II Guerra Mundial, com o desenvolvimento da medicina nuclear, é que a radioterapia surgiu como tratamento rotineiro contra câncer.

Ainda na I Guerra Mundial, Boveri, um cientista alemão, especulou que o câncer estaria ligado a aberrações no DNA das células. "Naquela época, havia poucas evidências de que o que ele falava seria verdade. Passaram-se cerca de seis décadas até isso mudar", conta Cristine Hackel, pesquisadora do Projeto Genoma Humano do Câncer Brasileiro e professora de medicina na Unicamp.

Outra importante observação levaria, anos mais tarde, à quimioterapia. Estudando o sangue de soldados expostos ao gás mostarda, verificou-se uma grande baixa dos leucócitos ou glóbulos brancos. Durante a II Guerra (1940-45), na busca de um gás mais poderoso, o Exército americano desenvolveu a mostarda nitrogenada, que se revelou eficiente contra certos linfomas. Nessa mesma década, o médico Sidney Farber testava os primeiros agentes quimioterápicos em crianças desenganadas com leucemia.

Essas primeiras drogas eram tão fortes que, por vezes, deixavam as crianças ainda pior, o que rendeu a Farber duras críticas. Sua persistência, no entanto, foi fundamental para desenvolver esse tipo de tratamento. Em 1956, com a ajuda da quimioterapia, aconteceu a primeira cura de um câncer metastático.

Dados mais precisos

A partir de 1960, outras teorias surgiram, como a da angiogênese. Entretanto a medicina ficou intrigada com duas interessantes descobertas; a primeira, referia-se a aberrações cromossômicas, que estariam ligadas a certos tipos de câncer.

"Notou-se, inicialmente, um cromossomo específico em pacientes com um tipo de leucemia", conta Cristine. A partir daí, outras formas de leucemia passaram a ser estudadas e, logo, outros tipos de câncer. "Isso permitia uma visão geral do processo, mas até então, pouco se sabia sobre os genes", continua.

Paralelamente, outros grupos de pesquisadores estudavam os chamados vírus oncogênicos, ou seja, vírus que, especulava-se, seriam causadores de câncer."Esse conhecimento vinha da experimentação com animais que desenvolviam certos tipos de leucemia ou tumores induzidos por vírus", diz Cristine. Ao estudar a seqüência genética desses e de outros vírus, descobriu-se que eles transportavam, na verdade, cópias de genes normais do organismo humano.

Foi a partir da junção dessas duas linhas de estudo que surgiu, então, a teoria dos oncogenes. O ser humano possui genes normais que controlam o crescimento e a divisão celular (os protoncogenes). Por algum motivo, esses genes podem sofrer mutações, ou seja, mudam de lugar, são ativados ou desativados, e alteraram sua função. Cada gene codifica um tipo de proteína que, por sua vez, irá exercer no corpo um "trabalho" específico. Se um gene responsável pela proliferação celular é modificado e produz uma proteína diferente, ele torna-se um oncogene. Essa mutação implicará na base de todo câncer, que é uma reprodução anormal das células.

"Mas nosso organismo tem condições de reconhecer essas lesões no DNA e repará-las; só que esse mecanismo, às vezes, não funciona", explica a pesquisadora. A tendência, aliás, é que, com a idade, funcione cada vez menos. Esse é um dos motivos que explicam o aumento da incidência de câncer em pessoas mais velhas.

O primeiro oncogene foi identificado em 1980. Em 1990, começou o Projeto Genoma Humano, colocando o revolucionário e promissor campo da genética na vanguarda dos estudos da medicina. Logo os cientistas perceberam que esse estudo poderia trazer benefícios para a pesquisa do câncer, originando o Projeto Genoma Humano do Câncer que, no Brasil, teve início em 1999. "A proposta é estudar quais são os genes diferencialmente expressos", teoriza Cristine. Em linguagem simples, o mais novo capítulo da luta contra o câncer consiste em entender quais são as diferenças entre genes normais e oncogenes.

Falta pouco

O século XXI começou com o fim da primeira fase do Projeto, que mapeou a seqüência de milhões de genes. "Agora é preciso refinar essa análise e buscar o significado das seqüências em cada tipo tumoral", afirma. Também é preciso descobrir como funcionam os fatores que induzem as mutações nos genes, desde vírus a poluentes. Até hoje, com poucas exceções, esse conhecimento é apenas estatístico. "Mas é confiável, porque indicam forte associação entre um hábito, como fumar, e um efeito", lembra. "Dificilmente vamos chegar a uma causa única que possa explicar todos os tipos da doença", acredita Cristine.

Fonte: Revista Hands nº 10 - junho / julho 2002.

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